Carta sobre o dinheiro escrita a partir de um cavalete




Falar de dinheiro do sítio de onde me ocorre reflectir sobre este assunto (em frente ao cavalete) é como tentar misturar as cores da minha paleta sem que do gesto nasça um imenso cinzento cromático. Não é tarefa fácil…

Inicialmente, o Homem comercializava através da simples troca ou escambo (câmbio, permuta). A mercadoria era valorizada na quantidade de tempo ou força de trabalho dispendida na sua produção.
Tempo, um conceito interessante, força e trabalho, um binómio nada desprezível… e o escambo ainda é uma prática inspiradora e agradável.

No escambo, troca de mercadoria por mercadoria, quem tivesse pescado mais peixe do que o necessário para a sua alimentação, trocava esse excesso com quem tivesse colhido mais trigo para daí fabricar pão. Não seria a primeira vez que trocava pintura por azeite ou um retrato por uma magnífica caldeirada. O primeiro fruto do trabalho é usualmente para a boca (também esta uma tradição antiga e gulosa).

Por outro lado, o gado e o sal, pela sua utilidade e procura, foram nobilitados como moeda mercadoria e circulando como elemento mais trocado por outros produtos, passaram a servir como medida de valor. Uma “Poderosa Afrodite” por um Boi Charolês – ora aí está uma troca com um excelente índice de cotação para o trabalho que exerço.

O que é certo é que ambas deixaram a marca da sua função. Pecúnia (dinheiro) e pecúlio (dinheiro acumulado) derivam da palavra latina “pecus” que significa gado, do sal herdámos o salário e a palavra capital tem a sua génese no latim “capita”, que significa cabeça.
As nossas relações de trabalho e comércio têm uma nota identitária forte e antiga, e muitos dos mecanismos económicos mais sofisticados estão enraizados em formas de pensar mais primitivas… e a Arte não é excepção.


O vil metal e o mercado artístico

Os primeiros materiais utilizados na cunhagem de moedas foram o ouro e a prata. Imunes à corrosão, raros, belos, não escaparam a uma associação simbólica com o misticismo religioso. Do simbolismo místico à aglutinação de um poder mágico não vai grande distância e a sua valorização económica cresceu, cresceu.
Na Babilónia, nos primórdios da Civilização, Sacerdotes e Astrónomos ensinavam ao povo a estreita ligação entre o ouro e o Sol e a prata e a Lua.
Esta sim seria uma valorização alquímico-sonhada: “Ana com brinco de pérola” equiparada ao Sol, “Ana a brincar com o Sapato” equiparada à Lua (esta é para ti Amor ;).
O certo é que o misticismo destes metais se mantem ainda vivo, sobretudo no nosso imaginário, para além das novas procuras, num mercado cada vez mais global e complexo.

E agora é um bom momento para perguntar: e então é sobre esta terra de brilhantes e metais que floresce a Arte, esta Criatividade?
Não. Pelo menos comigo não.
Esta (minha) Arte é telúrica, por isso não se alimenta desta bolsa de valores, antes cheira a cebolas e trufas.
Mas ao mesmo tempo compreende-a naturalmente. Compreende-a no sentido em que a circunscreve no bom entendimento com o Cliente, com base num sólido contracto, profícuo para ambos.
E é, nisto, vil o metal?

Naturalmente que não, assim como também não é vil o papel.
Utilizado desde a idade média, os recibos contra entrega de valores, garantias também elas permutáveis, circulavam como forma lícita de pagamento.
Era prática entregar objectos de ouro e prata a ourives com a consagração deste documento e é conhecido o sistema dos Templários que permitia entregar riqueza a esta ordem num local, mediante uma nota de valor, e recolher, apenas com o ónus do juro, riqueza equivalente em qualquer outra parte do mundo onde a ordem estivesse implantada.

É esta a origem primordial do papel-moeda e também aqui, no meu atelier, se aceitam cheques e notas e, como dizem os Ingleses, a "currency” é o euro (€).

Este papel (distinga-se aqui, dinheiro) é ele também mercadoria. Chama-se a isto actividade financeira e o dinheiro é realmente uma importante mercadoria, mas aproveito para clarificar que entre as quatro paredes da arrecadação em que pinto se trata não apenas mas sobretudo de tintas e telas; a especulação fica à porta.

O preço justo por um trabalho justo…
Sem outro assunto, disponível para comércio…


Atenciosamente
Nuno Quaresma
Outubro de 2008